quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Denominação de Origem Descontrolada

Por definição, cultura é um conjunto de fatores que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a lei, a moral, os costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano na sociedade da qual é membro. A lei nº 7180 de 28 de dezembro 2015 estabeleceu, no âmbito do estado do Rio de Janeiro, o marco referencial da gastronomia como cultura. Cultura também é definida pelas ciências sociais como um conjunto de ideias, comportamentos, símbolos e práticas sociais aprendidos de geração em geração. Percebe-se com isso que a cultura está longe de ser um comportamento pré-determinado de um grupo de indivíduos, e sim a soma de suas ações em períodos do tempo que em geral está intimamente ligado A suas crenças e condições sócio ambientais que os cercam.

Entendendo que a fome é um dos instintos mais poderosos que pode nos obrigar a ter comportamentos extremos, talvez o principal rito que nos conecta a todas as sociedades da história da humanidade seja a alimentação. E neste ato, que nos primórdios da civilização tinha por caraterística exclusiva, a sobrevivência da espécie, com o passar do tempo, transformou-se em uma prática multifacetada, com caraterísticas sociais, políticas, religiosas, afetivas e econômicas. Diante destas questões, é possível afirmar que o conceito de cultura alimentar nasce de uma necessidade básica humana, e se transforma em uma das maiores representações de um povo.

O artigo, segundo da lei 7180, cita que a gastronomia é cultura material e imaterial, reconhecida como patrimônio de grupos familiares, imigrantes, migrantes, povos e comunidades tradicionais, como os indígenas, os quilombolas, as comunidades de matriz africana ou de terreiro, os extrativistas, as caiçaras e os pescadores artesanais. Esta passagem demonstra a importância da gastronomia no contexto representativo dos grupos citados.

Massimo Montanari, uma das maiores referências em história da alimentação, conta no seu belíssimo livro “Comida como Cultura” que intelectuais, artistas e políticos se juntaram ao findar da segunda guerra mundial com a exclusiva missão de reerguer seu país de forma cultural. E hoje o mundo consome pizzas e massas, referenciando sua história e origem.

No que tange ao sagrado, é possível citar o exemplo da trilogia do azeite, vinho e pão.  A Idade Média foi marcada por uma contínua preocupação por parte da Igreja em simbolizar no cotidiano alimentar, suas crenças. Temos com isso, nestes três alimentos, a representação perfeita para a Santíssima Trindade. Entende-se que, no contexto religioso, estes insumos representam a crença de um povo. Respeitar esse contexto é vital pois mora na cultura, a história de um povo.  Já para as comunidades tradicionais, como os indígenas, os quilombolas, as comunidades de matriz africana ou de terreiro, outros alimentos possuem valores simbólicos e religiosos, que merecem a mesma atenção e respeito.

Arte

Movimentos artísticos entre pintores famosos nos presentearam com joias como A Gioconda (em italiano, La Gioconda, “a sorridente”), de Leonardo da Vinci, ou comumente conhecido como Mona Lisa. Este quadro é provavelmente o retrato mais famoso na história da arte, senão, o quadro mais famoso e valioso de todo o mundo. Poucos outros trabalhos de arte são tão controversos, questionados, valiosos, elogiados e comemorados. Com incontáveis reproduções e desconstruções, todas as possibilidades remetem diretamente a obra de Da Vinci. Não há quem reivindique a autoria deste patrimônio da humanidade. Este silêncio é uma das maiores formas de respeito a este gênio.

Na gastronomia, as interpretações de pratos são formas de homenagear e respeitar. Relembrar povos e suas origens em uma mesa é talvez a forma mais bonita de perpetuar seus valores e história. Muito tem se falado sobre apropriação cultural nas mais diversas áreas, inclusive na cozinha.

Cultura

A Apropriação Cultural é uma maneira de descrever quando uma pessoa, ou grupo de uma cultura hegemônica, adota aspectos de uma cultura que não é a sua e os usa sem referência ou relação com aquela cultura “emprestada”. Entende-se que, para ser denominado apropriação, é necessário que parta de uma cultura hegemônica em detrimento a uma cultura marginalizada, pois está justamente no fato dela ser segregada, o risco de sua extinção.

No processo de dinâmica social em que vivemos, há muito o que ser conversado a respeito do tema, mas o que parece ser inegável é que se a cultura representa a história de um povo, respeitar suas referências é impedir que suas origens se percam.

A cultura não nega a diversidade. Ela tem por premissa justamente perpetuar cada nuance. Por isso, novas formas de expressão serão sempre benvindas, caso não tenha por objetivo apagar a história. Desta forma a oposição a apropriação cultural seria justamente a diversidade de culturas.

Educação

É perceptível então a necessidade das escolas de gastronomia refletirem sobre as culturas gastronômicas como alicerces para uma formação profissional, transbordando as questões operacionais e provocando o pensamento social, cultural e cidadão destes futuros formadores de opinião. Assim, quando nos pusermos a entender os processos que nos limitam e ultrapassá-los através do conhecimento, nada mais nos parará. Descobriremos que é justamente por intermédio do pensamento crítico e construtivo das questões que nos cercam, que teremos a capacidade, enquanto cozinheiros(as), de realmente modificar a sociedade a qual pertencemos. Proteger preceitos históricos e religiosos, é uma forma de nos perpetuarmos e passarmos adiante as futuras gerações nossas origens.

Contudo, ainda estamos em uma sociedade que promove pré-conceitos baseados em falta de conhecimento histórico-cultural, revelando um racismo velado (que se desdobra em incontáveis mazelas), o ódio a minorias sociais e um carente instinto investigativo do que fomos e para onde vamos. Como possível resultado desta ignorância, estaremos fadados a viver as mazelas passadas, como citou o controverso filósofo irlandês Edmund Burke – “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”.

Imagine que lindo seria cozinheiros e cozinheiras conhecendo profundamente suas culturas originárias, as reverenciando e reproduzindo para o mundo.  E por meio desta deferência, fossem estes profissionais, os guardiões de um povo com suas receitas e histórias, numa troca sincera de hábitos e costumes com outras etnias, extravasando a sensação de pertencimento e afeto com sua gastronomia. Com isso, assim como Mona Lisa se transformou num marco referencial para pintores, estes preparos, técnicas e pratos se tornem inspirações para novas criações, abrindo mão de releituras e dando passagem para a criação no seu mais inspirador e original conceito.

Obs: O título do artigo é uma provocação que faz referência ao selo de Denominação de origem controlada ou (DOC). Um sistema de denominação utilizado para certificar vinhos, queijos, manteigas e outros produtos agrícolas de alguns países europeus. Esta designação é atribuída a produtos produzidos em regiões geograficamente delimitadas, que cumprem um conjunto de regras consignadas em legislação própria.

 


Texto: Gustavo Guterman
*Gustavo Guterman é Pós Graduado em Gestão em Segurança dos Alimentos pelo SENAC SP, Graduado em Gastronomia pela faculdade Estácio de Sá/Alain Ducasse Formation (ADF), Técnico em Cozinha pelo SENAC RJ, tem aptidão na realização de atividades de planejamento, organização, execução e comercialização de serviços de alimentação em nível tático e gerencial. Experiência no mercado profissional, em cozinhas nacionais e internacionais, atuando como cozinheiro e chefe de cozinha em estabelecimentos do segmento de alimentação e bebidas.
Integrante do Fórum Nacional da Educação em Gastronomia e parceiro do Observatório Cearense da Cultura Alimentar – OCCA, atua como coordenador do curso Gastronomia do Instituto Federal Fluminense. Professor nos cursos de Gastronomia e Hotelaria na citada instituição. Exerce consultorias e palestras na área, e é autor da página Guterman Gastronomia, que tem por objetivo a divulgação de ideias, artigos e noticias sobre o mundo da gastronomia, além colunista permanente do site Infood.
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